Saúde em todos os tamanhos: promover a saúde para pessoas de todos os corpos

Pode parecer óbvio que o cuidado que os profissionais e instituições de saúde oferecem para as diferentes pessoas é o mesmo, mas não é. Isso não seria um problema se a questão em pauta fosse a equidade, um dos princípios básicos do Sistema Único da Saúde, que diz oferecer mais atenção para quem precisa de mais nesse momento e vice e versa, mas não desse tipo de diferença que estamos falando.

Imagine que uma pessoa comparece ao médico se queixando de falta de ar e ela não recebe a prescrição de medicações para aliviar seus sintomas, na sequência uma outra pessoa entra na sala, com os mesmos sintomas e com o mesmo médico, e ela recebe prescrição de medicação para aliviar os sintomas. A única diferença entre elas é que uma é uma pessoa com um biótipo gorda e outra com biótipo magra, respectivamente.

Esse dado é de um dos muitos estudos científicos que evidenciam um fenômeno bastante comum na área da saúde: viés de peso (weight bias) que conduzem ao estigma relacionado ao peso (weight stigma), ou estigma da obesidade (obesity stigma). Aqui no Brasil, existe um termo utilizado como sinônimo que é gordofobia médica, descrito inclusive em documentos da Organização Mundial da Saúde.

Foi a partir disso que surgiu o movimento internacional conhecido como Health At Every Size (HAES), ou literalmente, Saúde em Todos os Tamanhos, em português. HAES não é apenas um movimento individual, mas sim um movimento social e político, pois entende que algumas questões estão fora do alcance individual das pessoas (tanto de profissionais quanto de pacientes).

 

Fonte: Jessamyn Stanley, fotografada por Christine Hewitt

 

Existem 4 pontos que são os eixos norteadores de HAES: (1) Reconhecer que a regulação do peso corporal é complexa; (2) Focar em promover saúde e não em alcançar um determinado peso; (3) Promover aceitação do corpo; (4) Reconhecer os vieses acerca do peso e contribuir para quebrá-los.

O cenário, em termos de literatura científica, sugere importantes melhoras na saúde, de maneira integral, para pessoas de todos os pesos utilizando como referencial teórico o HAES.

Enquanto profissionais de saúde, algumas possibilidades de tradução para a prática clínica devem incluir: pensar em ter móveis, ambientes e equipamentos que também sejam confortáveis para pessoas gordas (banco do consultório que suporte pesos maiores, balança que consiga aferir pesos maiores, prédio sem catracas, banheiro com mais espaço, etc.); refletir diariamente sobre intervenções que penso em fazer com  pessoas gordas, por exemplo se “eu faria o mesmo se essa pessoa fosse magra?”; ajudar com que essa pessoa desenvolva uma relação menor de ódio com o seu corpo independente de como ele é hoje, pois é muito mais fácil despender tempo e atenção para cuidados com algo que se gosta do que o contrário; entre outros.

No tratamento em pessoas com transtornos alimentares (TA) abordagens HAES se fazem extremamente necessárias. Se o tratamento do transtorno alimentar tiver como enfoque excessivo o peso existe um risco de se manter a lógica da doença. Alguns exemplos de falas de pessoas com TA, observados na prática clínica, de que do ponto de vista delas muitos tratamentos são conduzidos essencialmente focando no peso:

“Quando eu atingi um peso X tive alta e fui informada que já estava ótima, entretanto hoje eu vejo que embora não tivesse mais aquele peso extremamente baixo, os pensamentos e alguns comportamentos do TA estavam aqui. A sensação era que se isso não impactasse no meu peso, tudo bem, não importa o que eu fizesse”

“Pelo fato de não ser magra o suficiente e nem o meu peso diminuir o suficiente, eu senti que o tom dos profissionais era como se o que eu tivesse não fosse um transtorno alimentar”

“Eu estava incomodada com o meu peso `excessivo`, mas tinha a sensação de que muitas vezes os profissionais estavam mais incomodados do que eu, tentando resolver o meu problema do peso mais rápido do que o próprio TA”.

As abordagens HAES não sugerem que o peso seja ignorado, mas que se gaste um tempo avaliando o quanto nossos esforços não são para melhorar o peso prioritariamente em detrimento de outros aspectos. Muitos transtornos alimentares se baseiam na premissa de controle / modificação do peso corporal mesmo que isso comprometa a sua saúde, inclusive porque popularmente muitos métodos conhecidos para essa finalidade são inclusive não saudáveis. Se os profissionais que cuidam de pessoas com TA também não se atentarem, eles reproduzem o modus operandi da doença.

 

Cezar Vicente Jr.

Nutricionista (2008). Aprimorado em Transtornos Alimentares pelo AMBULIM-HC-FMUSP (2010). Nutricionista colaborador no Grupo de Estudos em Comer Compulsivo e Obesidade (GRECCO – AMBULIM).  Professor do Curso de Aprimoramento em Transtornos Alimentares do AMBULIM (HCFMUSP) desde 2011, especialmente no tema aconselhamento nutricional e abordagens não prescritivas. Experiência clínica em saúde pública e consultório particular. Membro da Society for Nutrition Education and Behavior (SNEB). Autor de capítulos do livro Nutrição Comportamental.

 

 

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